Peito Vestido

Vestiu-se com a primeira camisa que encontrou. Afinal não podia perder tempo com camisas, seu tempo era precioso demais para ser desperdiçado dessa forma. Bebericou o café e se queimou. Estava muito quente. Nice ouviu bastante naquela manhã, afinal de contas ele tinha que culpar alguém, agora além de queimado estava atrasado. Mas ele não notou que seu atraso se deu por conta do tempo gasto para explicar mil vezes a Nice que ele não gostava de café muito quente, porque tinha dentes sensíveis, e não podia machucar sua voz, que era o seu instrumento de trabalho, e consequentemente era o seu gan…Para ensinar aos outros era preciso gastar tempo sim. Não com camisas. Com camisas não se perde tempo. 

Resolveu desistir do café. Comeria qualquer coisa na rua. Verificou se tinha todos os projetos na pasta. Passou tanto tempo escrevendo, lendo e relendo que não podia correr o risco de perder o patrocínio porque tinha esquecido algum de seus documentos. Passou tanto tempo lendo e relendo isso na noite anterior, que não notou que tinha misturado as camisas brancas com as vermelhas na hora da lavagem, e que elas soltavam tinta e que isso mancharia as bran… Mas não, com camisas não se perde tempo. 

Não pensem que ele não gostava de camisas. Tinha várias. Coleções inteiras. Cada uma combinando com uma ocasião: Casamentos, encontros casuais, saída com os amigos, encontro com a família da atual esposa, encontro com a ex-esposa (sim nessa hora era preciso um pouco mais de esmero. Era preciso mostrar como estava bem. Orgulho, talvez…), noites solitárias etc. Tinham as que estavam na categoria especial: camisas de banho, camisas de sexo, camisas de ginástica etc outra vez. O importante era não expor o seu peito nu. Não, isso não podia. As camisas poderiam, para a felicidade de Nice, estar divididas com etiquetas. Mas não era preciso, ele sabia bem qual deveria ser usada em cada ocasião. Costume, talvez. Mas ele misturou as brancas com as vermelhas, e isso poderia ser um probl…Não. Não se perde tempo com essas camisas.

Estão todas aí. Divididas por ocasiões. É só pegar a primeira alocada na ocasião correspondente. Pronto. Não era preciso perder tempo. Havia camisas que podia substituir, emergencialmente, outra. Ele aprendeu… Certa vez, ele ganhou um peso a mais e camisa que escolheu vestir não lhe servia. Foi preciso expor seu peito nu… nossa como estava mais definido… Até achar, em uma loja, outra que servisse para a ocasião. Por isso a coleção. Ah! Esqueci de mencionar que tinham camisas de vários tamanhos. O motivo vocês já sabem. Bem…de qualquer forma, uma ou duas camisas manchadas, não exporia o seu peito nu. Causaria no máximo um mal estar a Nice, mas ele a ensinaria, durante um tempo, com seu discurso bem elaborado, a não misturar as camisas brancas com as vermelhas na hora da lavagem. 

Mas voltando àquela manhã, depois de perder tempo demais com as camisas (Eu, este narrador que vos fala, porque ele não perde tempo com camisas), ele saiu finalmente de casa. Ligou seu carro. Fez o caminho de sempre. Passou pelas mesmas ruas de sempre, chegando ao estúdio de sempre. Deu bom dia as pessoas de sempre. Como já as conhecia o contato visual não era necessário, até porque todas estavam muito ocupadas com seus projetos e afazeres. Continuando seu caminho até aquele momento glorioso do tão esperado dia, subiu no elevador de sempre, até o andar da sala de reuniões de sempre. Saiu um pouco eufórico, seguiu o corredor. Agora faltava pouco pra colocar em prática o seu projeto mais audacioso. Virou à direita e foi então que. 

Não. Isso não podia acontecer numa outra manhã? Tinha que ser nessa? Mário saia apressado da sala com um copo de café que agora estava jogado no meio da camisa dele. Mário é claro ouviria muito. E depois desse muito Mário resolveu lhe emprestar sua camisa. Não era perfeitamente adequada para aquela ocasião, além de não ser exatamente do seu tamanho, afinal o peito que estaria ali dentro não era o mesmo, mas depois de alguns ajustes, com os alfinetes e linhas de segurança que tinha em sua sala, deveria servir. Ele correu pra resolver essa situação. Entrou em sua sala. Apertou aqui, ali e pronto. Pegou a pasta e saiu. Saiu muito rapidamente, afinal de contas ele não perde tempo com camisas. 

Estava agora atrasado, queimado e desconfortável com a aquela roupa que não era sua. Não era naquele dia.Hoje…não sei. Deve ser, talvez. 

Laís Machado 13 de janeiro de 2011, 6h da manhã

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